Nada Como O Nosso Lar

Uma Exploração Global Da Violência Entre Parceiros

Uma Reportagem Investigativa De: Lucian Perkins, Journalista, Email, Susana Seijas, Journalista, Email, Joanne Levine, Journalista, Email, and Pierre Kattar, Journalista, Email

Aisha Namuyingo é uma mulher esbelta de fala mansa com grandes olhos amendoados. Aos 40 anos, ela é calma e elegante. Aisha se casou aos 18 anos, teve três filhos e já é avó. Ao longo de seu casamento, seu marido muitas vezes a humilhou e bateu nela. Ela sentiu medo, tristeza e solidão.

Aisha explica que ela e seu marido se casaram porque ele era ciumento e que ele começou a espancá-la logo após o casamento. Enquanto ela fala seus grandes olhos se concentram na terra vermelha e colinas verdejantes de Kampala longe à distância: "Meu marido me batia, mas, quando ele parava de me bater, ele pedia desculpas e esperava que eu o perdoasse. Toda vez que isso acontecia, eu não sentia que tinha alguma opção porque temia que meus parentes dissessem que eu era rude."

É surpreendente que 59 por cento - quase 3 em 5 - das mulheres ugandenses sofrem violência doméstica em suas vidas. Os países com taxas de violência doméstica comparáveis a Uganda são Chade, Tadjiquistão, Vanuatu e a República Democrática do Congo.

Para este projeto, nossa equipe de dados coletou as mais recentes estatísticas de 115 países em relação à violência doméstica - definida como abuso físico ou sexual entre parceiros íntimos. Nesse grupo, a mais baixa taxa de prevalência de violência doméstica é de 5 por cento. Mas 80 destes 115 países têm uma taxa igual ou superior a 20 por cento. Isso significa que, em muitos países, pelo menos 1 em cada 5 mulheres sofre violência na mão de seu parceiro.

Analisamos os dados e viajamos para a Nicarágua, Suécia e Uganda, para entender melhor por que essa violência entre parceiros é tão prevalente e tão comum. Procuramos também entender o que pode atenuar ou mesmo impedir que isso aconteça, em primeiro lugar. Os dados são mais amplamente coletados sobre mulheres heterossexuais como vítimas de violência doméstica e essa realidade moldou nosso trabalho.

Depois de cada agressão, o marido de Aisha pedia desculpas, então ela continuava a perdoá-lo, pensando que ele fosse mudar. Este padrão prosseguiu por anos até que a violência se intensificou.

Escutando Aisha, percebi que ela acha que seu papel na vida é ter filhos e se espancamentos são uma parte disso, então esse é seu destino. Ela está me falando sobre alguns dos piores momentos da sua vida e quando ela faz isso, ela olha para o chão, em seguida, para o céu. Ao escutar Aisha, eu me encontro em sua jornada de sofrimento e solidão.

Enquanto ela descreve sua vida num relacionamento abusivo, começo a entender o isolamento que sente, como se uma parede rodeasse seu corpo e a tornasse prisioneira, onde as opções – incluindo opções simples, como pedir a ajuda de sua família – desaparecem além de seu alcance.

Esta é a experiência de violência doméstica que mulheres compartilham em todo o mundo, não importando se são ou não educadas, ricas ou pobres, europeias, africanas ou latino-americanas. Elas ficam isoladas. Elas vivem com medo. E isso as paralisa.

Aisha não quer entrar em muitos detalhes sobre como o marido batia nela. É cuidadosa com as palavras. Ela se refere a estas agressões, através do nosso intérprete, como "maus-tratos". Estou impressionada com sua compostura, mas também frustrada. Como um disco quebrado, eu continuo a pensar: Por que ela aguentou isso? Como pôde aguentar isso? Será que ela de alguma forma achava que merecia as surras?

Quando as agressões se intensificaram, Aisha deixou de lado o que os amigos e a família iam pensar dela e largou o marido. Visivelmente ficando mais chateada, ela se prepara para contar que, em sua ausência de dois anos, seu marido foi morar junto com uma outra mulher. Aisha ocasionalmente ia lá para pedir dinheiro para o seu terceiro filho, que ainda era um bebê. Depois de dois anos, a sogra de Aisha a convenceu a voltar para seu marido e ela fez isso, esperando que ele fosse mudar.

"Eles me imploraram para voltar. Mas nunca souberam que a mulher que vivia com o meu marido era HIV positivo, portanto ele estava infectado", diz ela, agora com lágrimas inundando seus olhos.

Aisha não consegue terminar o resto da frase, então nosso intérprete me diz calmamente em inglês o que Aisha está sofrendo para dizer em luganda, seu idioma nativo: "Quando ela voltou, teve relações sexuais com ele e é claro que foi infectada com o HIV", o nosso intérprete continua, "e é por isso que ela está chateada."

Foi só mais tarde, quando Aisha viu a mulher, com quem seu marido tinha estado durante a separação, andando pela cidade, magra como um esqueleto e com uma terrível erupção cutânea, que Aisha suspeitou que a mulher tinha o HIV. Ela percebeu que o marido estava ficando doente com frequência, que ele poderia estar infectado e que, por consequência, ela também poderia ter o vírus do HIV. Ambos fizeram o teste. Ambos tinham o HIV.

Anos mais tarde, ainda de volta com ele, o pior ainda estava para vir: "Eu tenho HIV e meu marido me trancou para fora de casa. Sem comida, sem água e eu não fiz nada. Mas era hora de eu tomar meu remédio."

Naquele momento, Aisha sabia que tinha que largar o marido. Ter seu remédio era vital. Ela tinha que mudar a sua situação -- ou ia morrer.

Hoje, o corpo magro e frágil de Aisha está escondido debaixo de um vestido longo com mangas bufantes imensas, o típico vestido "gamesi" de Uganda. Ela vive com o HIV há 20 anos. Felizmente nenhum de seus filhos testaram positivo. "Muitas mulheres não pedem aos seus parceiros para fazer teste de HIV, porque muitos homens não vão permitir isso. Assim, a violência coloca as mulheres num risco muito elevado para o HIV, porque você não faz o teste e não pode dizer não ao sexo", Aisha me diz, com o pesar de alguém que passou por problemas demais.

Em Uganda, onde os homens são muitas vezes infiéis, o desafio da violência doméstica é agravado por uma alta taxa de HIV. Intensa campanhas comunitárias e políticas promoveram e passaram com sucesso a Lei de Violência Doméstica, em 2010.

Mas que elementos sociais em cada país podem desempenhar um papel no índice de prevalência de violência doméstica de 28 por cento, 59 por cento ou 78 por cento? Podemos obter algum discernimento que pode ajudar a mitigar a violência doméstica em todos os lugares? Um elemento examinado através da análise de dados também foi algo ouvido repetidamente na rua. As atitudes em relação à violência doméstica importam. Especificamente, as atitudes das mulheres em relação à violência doméstica importam.

Ao longo dos anos, pesquisas têm perguntado às mulheres se elas acreditam que há certas circunstâncias – por exemplo, se queimar o jantar ou recusar sexo – em que sofrer agressão é aceitável. Há uma clara ligação entre as atitudes sociais em relação à violência de parceiro e a prevalência em um nível nacional. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou um relatório em março de 2013 afirmando que "a prevalência média de violência doméstica em países onde há uma elevada aceitação da violência doméstica é mais do que o dobro da média dos países onde há uma baixa aceitação da violência doméstica."

Reconhecendo que a lei não é suficiente, duas organizações em Uganda, Raising Voices e o Centro para a Prevenção da Violência Doméstica, estão trilhando novos caminhos e mudando as atitudes, trabalhando com homens e mulheres para sensibilizar e desafiar a mentalidade das pessoas. Ao fazer isso, estão mudando comportamentos.

Rose Namutebi, uma conselheira matrimonial ou “senga” de 70 anos, contou que as mulheres costumavam vir a ela para dizer que sofriam abuso, e sua resposta era "ele é seu marido, aguente". Agora, através do trabalho de sensibilização dos militantes em sua comunidade, é mais provável que ela diga que "é contra a lei seu marido bater em você."

Mudar atitudes exige paciência e sensibilização incansável da comunidade. Outro elemento social que tem uma relação com os índices de prevalência de violência doméstica é se as mulheres são financeiramente independentes. Com base no bom senso, qualquer pessoa que é financeiramente dependente de uma outra pessoa vai pensar muito antes de deixá-la. E a nossa análise dos dados mostra que países onde as mulheres têm pouco ou nenhum acesso ao crédito têm quase o dobro do índice geral de violência doméstica dos países onde as mulheres têm o mesmo acesso ao crédito que os homens. Além disso, os países onde as mulheres têm acesso igual aos homens à propriedade de terras agrícolas, em média, têm menores índices de prevalência de violência doméstica que os países onde elas não têm igualdade de acesso.

Grace Lwanga, que trabalha no Centro para a Prevenção da Violência Doméstica de Kampala, aconselha as mulheres a fazerem algo que é incomum em Uganda: Ela recomenda que elas possuam propriedades em seu nome. "Mesmo as mulheres da classe trabalhadora, quando eu converso com elas, elas têm um trabalho, recebem seu dinheiro, mas quando você vai comprar terra, os líderes locais lhe dizem: 'Não, [a propriedade] deve estar em nome de seu marido'. E amanhã, quando você tem um problema, o título não está em seu nome."

A meio mundo de distância, o índice de violência doméstica na Nicarágua é cerca de metade do índice de Uganda, pois há mais consciência da violência doméstica e menos aceitação da mesma; mesmo assim, acabar com gerações deste tipo de violência é um desafio permanente.

Em um local não revelado, atrás de muros altos, numa região fora de Manágua, eu me encontro com Graciela, uma bela mãe de 32 anos, que sofreu oito anos de abuso físico e emocional de seu marido. Graciela pediu para não usar seu nome real ou revelar seu rosto. Ela vive com medo de que o marido abusivo que ela deixou vá encontrá-la e matá-la.

Ela é um dos 29 por cento de mulheres que sofrem violência doméstica na Nicarágua. Desta forma, a Nicarágua não é incomum e seu índice é comparável ao do Reino Unido, Barbados, Finlândia e Nova Zelândia.

“Ele me falava, 'Você vai morrer’. Quando ele apontou o revólver para mim, eu não aguentei. Eu estava morando lá, dessa maneira, por seis meses. Naquela vez eu estava grávida de seis meses... A minha filha nasceu. Então ele ameaçou matá-la se eu não continuasse vivendo com ele. Ele disse que ia me matar e matar nossa filha, e até mesmo matar a minha mãe se eu não ficasse com ele.”

Essa sensação de isolamento muitas vezes emerge lentamente, ao lado de um aumento gradual da violência. E porque isso acontece de forma gradual, muitas mulheres não percebem que estão ficando presas.

Uma noite, depois de seu segundo filho ter nascido, o marido de Graciela segurou uma faca junto ao bebê de 3 meses e ameaçou matá-lo. Como Aisha, Graciela caiu em si nesse momento, vendo claramente o perigo em que ela e seus filhos estavam e resolveu buscar um caminho para sair dessa situação.

"O que mais me dói é que a minha filha estava assistindo", diz Graciela, dominada pelo choro, "Isso me dói porque a minha filha se lembra, diz que seu pai é uma pessoa má. Ela sempre diz que ele é uma pessoa má. Ela nunca esqueceu."

Quando Graciela contou o que sofreu, eu não pude deixar de pensar – como alguém poderia ameaçar um recém-nascido com uma faca? Mas eu também senti profunda tristeza. Não é suficiente que o seu parceiro lhe bate até você ficar inconsciente, assim como Graciela, mas, antes de deixá-lo, você tem que ver o homem que um dia amou ameaçar matar seus filhos?

Luz Torres está tentando virar a maré da violência e criar tábuas de salvação para mulheres como Graciela.

Luz é uma ativista prática e direta de voz rouca que dirige o Coletivo de Mulheres 8 de Março -- uma organização que inclui um centro movimentado de ajuda a vítimas de violência, um abrigo e vários programas de conscientização.

Luz também é uma mãezona para uma legião de voluntárias que atuam como suas emissárias na região de Manágua, conscientizando sobre a violência doméstica em seus bairros e o que pode ser feito para evitá-la. Todas elas têm como objetivo fazer com que as mulheres saibam que há opções se estão sofrendo violência. Nenhuma delas quer ver mais mortes por violência doméstica, como a de Johana González.

Johana era uma professora de 37 anos e mãe de dois filhos. Depois de sofrer por 10 anos em um casamento abusivo, ela conseguiu deixar o marido. Um mês depois de deixá-lo, ele a matou numa manhã quando ela descia do ônibus a caminho do trabalho. O que aconteceu com Johana é exatamente o que temem tantas mulheres em relacionamentos abusivos e, para algumas, uma grande parte da razão pela qual elas ficam.

Este ano até agora, 47 mulheres foram mortas por seus parceiros na Nicarágua, um país de 6 milhões de pessoas. Isso é 17 assassinatos a mais do que o número total do ano passado, de acordo com a Rede de Mulheres Contra a Violência da Nicarágua, que mantém um registro dos assassinatos chamado de "femicídio".

Luz conta que a situação chegou a um ponto de "alerta vermelho". Ela está decepcionada e argumenta que o governo subestimou o índice de violência contra as mulheres. "Por exemplo, o governo só está relatando 18 mortes, em comparação com o número do Observatório de 47 mulheres mortas até agora este ano. O que isso significa? "Luz pergunta com raiva e indignação. "Nós não podemos depender dos dados oficiais."

Luz me leva para conhecer a família de Johana. Eles se reúnem para lembrar dela na cidade de Masaya, a uma hora de Manágua. Emma Mena, tia de Johana, está ocupada dando os toques finais a um altar improvisado, antes de uma reunião de oração em homenagem a sua sobrinha.

No centro, debaixo de uma imagem da Virgem Maria, está uma foto de Johana, forte e pensativa, e muito jovem para ser sepultada no cemitério local. A terra no seu túmulo ainda está solta e grossa, repleta de fitas roxas e brancas.

"Em uma ocasião, eu disse a ela para deixá-lo, mas ela tinha medo do que poderia acontecer ou que ele fosse fazer algo contra as crianças", diz Mena, com as pálpebras inchadas de tanto chorar. "Johana não quis conversar."

Várias vezes, eu ouvi que aproximar-se, falar, certificar-se de que as vítimas de violência doméstica sabem que elas têm opções é fundamental para que saiam destes relacionamentos violentos. Mas Johana, Graciela e Aisha, todas elas, superaram enormes desafios e escalaram tal muro de isolamento.

Podemos evitar que as paredes se formem antes de tudo? Como podemos garantir que as vítimas conheçam seus direitos, suas opções? Como a dor terrível que a violência doméstica causa em indivíduos e membros da família pode parar? Como podemos acabar com a violência antes de começar?

Conversar com amigos sobre a violência que se acostumaram em casa pode ser difícil para as vítimas por muitas razões. Um elemento poderoso é que alguém que é abusado vai evitar, obviamente, fazer qualquer coisa que possa perturbar o abusador ou provocar outra surra. Fazer até mesmo coisas pequenas ou simples que podem convidar uma onda de abuso físico e emocional torna-se impensável. Mas buscar ajuda após a primeira incidência pode representar a melhor chance que elas têm de sair.

O problema, diz Luz, me olhando diretamente nos olhos, "é que, quando um problema não é tratado, torna-se uma pandemia. O governo da Nicarágua não está atacando a violência contra as mulheres, então se transforma em uma pandemia. O que falamos aqui, dia após dia, é pressão. As organizações de mulheres estão lidando com essa violência e não o governo da Nicarágua. Cadê o governo falando sobre as milhares de Johanas que morreram?"

Mas algumas medidas estão sendo tomadas. Não muito tempo atrás, um marido na Nicarágua podia bater na sua mulher e não era considerado crime. Uma lei promulgada em 2012 agora protege o bem-estar físico, emocional e econômico das mulheres. Luz e ativistas como ela gostariam que houvesse mais foco em prevenção, em vez de punição.

Porque é tão prevalente, a violência doméstica pode parecer um problema social enorme e intratável. Nossa análise de dados e conversas com as vítimas e aqueles que trabalham com elas diariamente sugerem que há pelo menos algumas coisas que podem ajudar a evitar ou escapar desse abuso.

Os dados globais que a ORBmedia coletou sobre a prevalência da violência doméstica e a legislação que criminaliza a violência doméstica indicam que os países com leis que criminalizam espancamento, mutilação ou estupro de um cônjuge têm um índice médio de 5 pontos percentuais menor de prevalência de violência de parceiro que os países que não possuem tais leis. Em muitos casos, quando as mulheres sabem sobre a lei, elas se sentem encorajadas a procurar ajuda.

Porque o governo da Nicarágua não retornou nossas ligações pedindo uma entrevista para discutir a lei e o que está fazendo para prevenir a violência contra as mulheres, eu visito Sergio Ramírez, escritor e ex-vice-presidente da Nicarágua, que diz que a lei por si só não é suficiente.

"A lei precisa fazer parte de uma mudança no ambiente geral, o que significa que deve haver uma política de proteção estatal dos direitos das mulheres, para campanhas de saúde pública -- porque este é um problema de saúde pública -- e não apenas condenar os maus tratos."

Ainda assim, fazer com que as mulheres saiam de relacionamentos abusivos é difícil.

Eu pergunto a Graciela o que ela faria para acabar com a violência doméstica e sua resposta ecoa o que muitas mulheres como ela me disseram: "Eu diria que a primeira vez que você sofre violência e que se sente mal – fale, registre ou vá para as organizações; se as autoridades não ouvem você, fale com as organizações de mulheres, há opções."

Ouvi ecos da experiência de Graciela quando visitei Wiweca Holst, que é membro do conselho da ROKS, a organização sueca de abrigos que coordena mais de 100 abrigos para mulheres vítimas de violência na Suécia.

Eu combinei de ver Wiveca porque eu estava com dificuldades para encontrar uma mulher que tinha sofrido violência doméstica para entrevistar. Por causa de leis de privacidade mais rigorosas na Suécia, o acesso às vítimas é difícil. Quando nos sentamos para a entrevista em uma sala de conferências ao lado de uma janela com vista para o centro de Estocolmo, fiquei chocada ao descobrir que a própria Wiveca conheceu a experiência de violência em primeira mão:

"Então, ele começou me controlando. Me isolando. Me ferindo com palavras. Fui casada com um homem violento por 15 anos. E demorou vários anos para eu compreender que ele me estuprou. Ele era um homem muito conhecido. E eu estava convencida de que nunca ninguém ia acreditar em mim. Quer dizer, todos o amavam, ele era uma pessoa tão extrovertida e muito charmoso e bem quisto. Por isso, não contei a ninguém."

O trauma de Wiveca se estendeu a seu filho. Foi só no ano passado – 20 ou mais anos após o pior da violência - que Wiveca descobriu que seu filho mais velho dormia com um taco de beisebol quando era criança. "E ele disse que ia matar o pai se ele viesse. Então, sim, ele sabia."

Além do trauma emocional, físico e psicológico da violência, há também implicações para a saúde. Dr. Steven Lucas, um pediatra norte-americano trabalhando agora na Suécia, é o pesquisador chefe do Centro Nacional para o Conhecimento sobre a Violência dos Homens Contra as Mulheres na Universidade de Uppsala.

"Vemos que a saúde das pessoas que foram afetadas pela violência como um grupo é muito pior em algumas áreas, [há] uma prevalência mais elevada em vários graus de depressão, sintomas do transtorno de estresse pós-traumático, mas também sintomas psicossomáticos. E mesmo em nosso estudo mostramos que as mulheres mais velhas têm até quatro vezes maior incidência de ataques cardíacos, infarto do miocárdio, se foram expostas à violência anteriormente."

Wiveca acredita que sofre de reumatismo por causa da violência que sofreu em seu casamento. "Eu não tenho nenhuma evidência científica", diz com franqueza a loira de 65 anos, "mas estou absolutamente convencida de que o meu sistema imunológico ficou transtornado, atacando minhas articulações, como consequência de viver em um ambiente violento."

Como outras vítimas, um dia Wiveca percebeu que simplesmente não podia continuar assim. "Ele quebrou o meu nariz... foi o fim. Eu aguentei o suficiente. "Depois de 15 anos, algo nela havia mudado e ela encontrou forças para deixá-lo. Ela escalou para o outro lado do muro.

Poucos dias depois de conversar com Wiveca, eu me encontro com Anna Lena Mellquist, que dirige o abrigo Olivia para mulheres em uma rua repleta de lindas casas de campo de madeira na cidade de Alingsås no oeste da Suécia.

Mellquist, 64 anos, uma política local e ativista de mulheres, viu centenas de mulheres passarem pelo abrigo. Ela diz que a experiência delas é muitas vezes parecida: "Você não percebe que está mudando a si mesma para ser como ele quer que você seja. E é tão lento e você não percebe", Mellquist me diz, com a inflexão de um conto de fadas que deu errado, “e quando ele começa a ser pior com você, ele pode dizer: 'Eu sinto muito. Como eu pude ser tão ruim?’ E ‘eu te amo’ e ‘você é a minha vida’ e tudo mais."

Enquanto Mellquist continua falando, vêm imagens de Aisha e Graciela a minha mente, “... E ela o perdoa e diz: 'Tá bom. Você teve um dia difícil no trabalho’. E então talvez vocês tenham comprado uma casa juntos. Talvez vocês tenham um bebezinho. E você está presa nisso. E acontece devagar. E então ele toma conta da sua vida e você não percebe."

Um estudo da União Europeia intitulado "Violência contra as Mulheres" coloca o índice de violência doméstica na Suécia em 28 por cento, apenas 1 por cento inferior ao da Nicarágua. É difícil saber se a violência doméstica é subestimada, mas o número ainda me chocou. Não achava que a violência contra as mulheres seria um problema na Suécia.

Assim que eu pergunto se a violência doméstica tem algo a ver com o consumo de álcool ou as longas noites de inverno na Suécia, ela educadamente ri da minha cara. Wiveca rapidamente resume a raiz da violência doméstica: "Os homens estão usando a violência para estar no poder, para ter o controle e poder sobre as mulheres. Eles querem ser o único no controle e a pessoa que toma as decisões em todos os aspectos da vida."

Podemos acabar com a violência doméstica? Se podemos, como? A violência doméstica é um problema social complexo e não há respostas simples ou fáceis.

Mas Anna Lena Mellquist tem um primeiro passo extremamente claro. Ela aconselha as mulheres a se aproximarem de amigos para acabar com o isolamento: "Converse com eles. Mas você deve confiar nesses amigos. Então, largue [o homem] antes que seja tarde demais. Esse é o melhor conselho a dar a uma mulher que é abusada. Ele não vai mudar. Desculpe dizer, mas ele não vai", ela afirma com convicção, “e muitas vezes estou certa porque algumas delas que não ouviram esse conselho de alguém não sobreviveram. Portanto, eu acho que é um grande problema no mundo."

Todas as vítimas de violência doméstica que eu conheci conseguiram levantar e sair de trás desse muro de isolamento. Wiveca pediu ajuda para a família e amigos. Ela comprou um apartamento e se tornou uma ativista realizada, trabalhando para prevenir a violência na Suécia. Seus filhos já cresceram e superam a experiência.

Aisha buscou a ajuda do Action Aid, um abrigo para mulheres. Graças à lei de violência doméstica em Uganda, o ex-marido de Aisha está pagando sua manutenção mensal. Aisha encontrou trabalho como faxineira, varrendo as ruas movimentadas de Kampala. Ela continua bem com seus remédios para o HIV.

Graciela, cujo marido ameaçou seu bebezinho com uma faca, ainda está escondida em um abrigo na Nicarágua, com medo que ele vá encontrá-la e matá-la. Mas, claro, ela ainda tem sonhos. Ela conseguiu comprar um pequeno pedaço de terra, graças a uma iniciativa do governo que ajuda mães solteiras. Graciela quer estudar para ser secretária. Como tantos pais de todo o mundo, ela quer dar aos seus filhos uma vida melhor. O abrigo tem sido sua tábua de salvação. Em todos os casos, quebrar a parede de isolamento foi a chave.

Eu entrevistei muitas mulheres que foram abusadas e muitas mulheres dedicadas – e homens – que estão trabalhando para prevenir a violência doméstica. Suas histórias, sua coragem e seu compromisso ficaram comigo muito tempo além das nossas conversas. Na Suécia, tive a sorte de conhecer Angela Beausang, uma das fundadoras da rede de abrigos ROKS, poucos dias antes de sua aposentadoria aos 66 anos. Angela acredita que todos nós temos um papel a desempenhar:

"Se você tem uma amiga que de repente não quer ir a nenhuma festa, não quer sair, jantar com você ou ir às compras, fique atenta porque pode haver algo errado. Não desista dela."


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