Choque Financeiro
Um Mundo À Beira Do Desastre Financeiro
Uma Reportagem Investigativa De: Chris Tyree, Journalista, Email, e Scott Wallace, Journalista, Email
CAPÍTULO 1
A GRANDE QUESTÃO
Com o intuito de melhorar a igualdade econômica global e até mesmo tirar populações inteiras da pobreza, especialistas financeiros e instituições bancárias internacionais estão depositando suas esperanças em algo chamado “inclusão financeira”. A ideia é disponibilizar ferramentas financeiras formais e regulamentadas como contas bancárias, cartões de crédito, dinheiro móvel e seguros para os dois bilhões de pessoas no mundo inteiro que ainda não têm acesso a esses serviços.
Economistas do Banco Mundial e outras instituições internacionais afirmam que o acesso a esses serviços desempenha um papel crítico na redução da pobreza extrema, proporcionando estabilidade econômica para indivíduos, famílias, comunidades e países. Segundo eles, a inclusão financeira facilita investimentos em educação, nutrição adequada, melhoria dos cuidados com a saúde e até mesmo a incidência de cidadãos abrindo ou expandindo seus próprios negócios. Em teoria, uma cidadã “financeiramente incluída” seria uma cidadã bem equipada para enfrentar e administrar uma possível crise financeira.
Em 2014, o Banco Mundial encomendou uma pesquisa chamada Global Findex para examinar a saúde financeira de pessoas e países ao redor do mundo. Uma das seções da entrevista era sobre a capacidade dos entrevistados de acessar dinheiro em caso de crise e, se afirmativo, como acessariam. Para os que disseram que seriam capazes de conseguir o dinheiro, a fonte mais citada foi a família e os amigos, seguidos de poupança pessoal.
Uma grande parte do processo exclusivo de reportagem da Orb é a análise de dados. Para esta matéria, correlacionamos quatro variáveis — nível de instrução, renda, gênero e participação nas estruturas financeiras formais — com a capacidade humana de conseguir dinheiro para emergências. Ao agregar essas correlações em nível de país, conseguimos estimar a proporção de entrevistados em cada país com probabilidade de conseguir o dinheiro. Comparamos esses números com as respostas da pesquisa Global Findex. Isso nos permitiu apontar os países com as maiores discrepâncias, i.e., onde os resultados previstos diferiam mais acentuadamente das respostas reais. Com base no que aprendemos, selecionamos quatro países — Brasil, Camboja, Estados Unidos e Mianmar — para examinar mais de perto como as pessoas lidam com crises financeiras. Dessa maneira, a Orb criou uma perspectiva diferenciada por meio da qual visualizamos e avaliamos a eficácia da inclusão financeira como instrumento de promoção da resiliência financeira e alívio da pobreza extrema.
Na verdade não importa quem seja a pessoa ou onde ela viva; a questão não é se você já enfrentou uma crise financeira, mas sim quando – e como conseguiu lidar com ela. Em alguns casos, uma crise financeira é a fase mais difícil da vida de uma pessoa — um momento que nos desafia como indivíduos tanto no nível financeiro quanto no emocional.
CHOQUE FINANCEIRO
E QUANTO A VOCÊ?
CAPÍTULO 2
A BEIRA DO DESASTRE FINANCEIRO
CHOQUE FINANCEIRO
Karen Oliver, 60 anos, aconchega-se no conforto de seu sofá bege pela última vez. Em 15 minutos, uma jovem e o namorado chegarão para levá-lo embora do apartamento dela em West Arlington, Virgínia, bairro afluente de Washington. Karen usará os US$200 da venda para ajudar a mãe idosa a pagar suas contas médicas.
Sob qualquer ângulo, Karen é uma mulher bem sucedida. Ela é funcionária pública americana, com emprego seguro e salário alto. Ao longo dos anos ela conseguiu juntar uma boa poupança e tem uma conta de aposentadoria. No entanto, aqui está ela, vendendo a mobília da casa.
Por quê? Porque Karen não estava preparada para assumir as responsabilidades financeiras de parentes que não foram tão conscienciosos. Aliás, ela agora é a emprestadora de dinheiro para o resto da família. Como resultado, suas economias secaram. Agora ela está vendendo bens fixos para pagar coisas que o salário dela não vai cobrir. Qualquer emergência dela própria como um acidente ou problema grave de saúde pode trazê-la para a beira de um desastre financeiro, mesmo depois de todos esses anos de cuidadoso planejamento.
Emergências financeiras são muitas vezes resultado de problemas de saúde, mas também podem ser desencadeadas por uma demissão do emprego, perda de rebanhos nas zonas rurais ou consertos caros na casa própria.
Os entrevistados do Global Findex tiveram que responder se seriam capazes de obter uma certa quantia em um prazo de 30 dias para enfrentar uma emergência hipotética. Apenas 31 por cento disse que seria totalmente possível ou razoavelmente possível conseguir o dinheiro; 22 por cento disse que seria impossível. Isso não deixa dúvidas: como população global, nós vivemos à beira de um abismo financeiro.
A QUEM RECORRER
Em seguida os entrevistados responderam uma pergunta correlata: "Se você acha que conseguiria o dinheiro, onde ou como conseguiria?"
Trinta e oito por cento das pessoas que se declararam financeiramente preparadas para emergências disseram que recorreriam à família ou amigos e 35 por cento indicaram que tirariam das economias pessoais. Outros citaram várias outras fontes: salários, adiantamentos, cartões de crédito ou empréstimos de um agiota, loja de penhor ou instituição formal.
A visão que emergiu da realização da pesquisa Global Findex abriu o caminho, em 2015, para um projeto iniciado pelo Banco Mundial chamado Acesso Financeiro Universal 2020 (UFA2020). O programa visa proporcionar a adultos no mundo inteiro acesso a contas formais e serviços de transações, com foco em 25 países específicos onde residem 73 por cento dos outros dois bilhões de pessoas "sem-banco" do mundo.
Bancos, companhias de cartão de crédito, microfinanciadoras, órgãos multilaterais e empresas de telecomunicações aderiram ao UFA2020 para executar a estratégia com o objetivo de trazer dois bilhões de pessoas sem conta bancária para o grupo dos incluídos financeiramente.
Jim Yong Kim, presidente do Grupo do Banco Mundial, explica: "O acesso aos serviços financeiros pode servir de ponte para sair da pobreza. Estabelecemos uma meta extremamente ambiciosa: o acesso financeiro universal até 2020."
No entanto, o trabalho de reportagem da Orb sobre a forma como as pessoas administram crises financeiras nos fez começar a pensar se a disponibilização do acesso a esses serviços financeiros seria em si mesma um instrumento tão forte assim para tirar as pessoas da pobreza.
UMA TEORIA BANCÁRIA
DESENCADEADORES
CAPÍTULO 3
FORA DE ALCANCE
As barreiras são muitas no caminho para atingir os objetivos prescritos pela iniciativa UFA2020.
O maior acesso a linhas formais de crédito, um dos pilares da inclusão financeira, pode resultar em famílias enterradas em dívidas massacrantes se não for acompanhado por controles das taxas de juros e educação financeira para consumidores.
Em países como o Brasil e os Estados Unidos, o acesso ao crédito provocou uma disparada de dívidas tanto na classe média quanto na população economicamente mais desfavorecida. Essa dívida ameaça minar a redução da pobreza e deixa as pessoas especialmente vulneráveis a choques financeiros. Mesmo entre os financeiramente incluídos, muitos estão gastando acima de suas possibilidades e poucos estão economizando. O resultado é que o cidadão não tem dinheiro nenhum para enfrentar uma emergência.
O UFA2020 e projetos similares para "incluir" os cidadãos em sistemas financeiros formais são em grande parte centrados em um esforço para incentivar as pessoas a economizar com segurança ao abrir algum tipo de conta. Acredita-se que essa poupança irá melhorar a resiliência financeira geral dos cidadãos. No entanto, de acordo com o Banco Mundial, apenas 22 por cento da população mundial faz economia, seja com conta ou sem conta.
Além disso, muitos cidadãos dos países em desenvolvimento moram em regiões remotas, onde a agricultura é a principal atividade econômica, ou em setores urbanos marginalizados e sem instalações bancárias tradicionais que ofereçam segurança para guardar dinheiro.
Muitos dos cidadãos “sem-banco” do mundo trabalham em economias informais ou “cinzas”, onde a maioria das transações é realizada em espécie. Essas ocupações ficam "fora dos livros" e, desse modo, o indivíduo não tem a documentação empregatícia oficial que a maioria dos bancos exige para abrir uma conta. O acesso à conta bancária, portanto, é apenas uma das peças do "quebra-cabeça" da inclusão financeira.
Finalmente, a realidade é que a maioria de nós é financeiramente analfabeta. De acordo com uma recente pesquisa da agência de classificação de risco Standard and Poor’s, apenas um em cada três adultos no mundo exibe uma compreensão básica de conceitos financeiros.
ASCENSÃO E QUEDA
As duas maiores empresas de cartão de crédito do mundo, Visa e MasterCard, assinaram parcerias com o UFA2020. Juntas, elas esperam colocar cartões de crédito e de pagamento nas mãos de mais de um bilhão de novos clientes. No entanto, a dívida de cartão de crédito continua a ser uma grande preocupação para os economistas que abraçam o conceito de inclusão financeira, especialmente na esteira do que tem acontecido em lugares como o Brasil, um dos primeiros países a adotar o conceito.
Com o crescimento da economia e a emergência de uma nova classe média no Brasil nos primeiros anos do novo milênio, o Banco Central do Brasil (BCB) teve a iniciativa de trazer mais cidadãos “sem-banco” para o setor financeiro formal. Em 2009, o BCB realizou um fórum sobre inclusão financeira em Salvador. Mostrando seu compromisso com este novo esforço para levar serviços financeiros a esses cidadãos, o Brasil tornou-se, em 2010, membro fundador da Aliança para a Inclusão Financeira, um consórcio de países de mesma visão que tenta, com suas organizações bancárias, beneficiar a população “sem-banco”.
Como resultado desse esforço no Brasil em 2014, 68 por cento dos adultos relatou aos entrevistadores do Global Findex que tinha conta bancária ou acesso a serviços financeiros formais, mas somente 12,3 por cento disse que seria "totalmente possível" acessar o dinheiro em caso de crise. O que preocupa mais? Um gritante percentual de 44,2 por cento revelou que não conseguiria o dinheiro de modo algum. Como isso é possível em um país que parecia estar se movendo na direção certa, com melhor acesso aos bancos e mais prosperidade para todos?
JUNTOS NO CICLO DA DÍVIDA
Um dos maiores culpados disso é uma coisa óbvia no Brasil. A propaganda de cartões de crédito está estampada em praticamente todas as lojas, vitrines, outdoors e placas do país.
Em 2009, quando o projeto de aumentar a população financeiramente incluída foi lançado no Brasil, a classe média estava crescendo, impulsionada por salários mais altos e mais oportunidades de emprego. Pessoas que viviam com muito pouco começaram rapidamente a gastar dinheiro com um estilo de vida mais luxuoso. Percebendo a oportunidade, as empresas de cartão de crédito ampliaram a abrangência do dinheiro de plástico para praticamente qualquer um que estendesse a mão. Sem uma educação financeira significativa para entender como funcionam o crédito e as normas rigorosas das taxas de juros, a nova classe média acumulou uma dívida sem precedentes, pagando tudo com cartão, desde televisores até papel higiênico. A economia estava crescendo e ninguém parecia pensar sobre como pagar depois. Quando chegou a hora, a inadimplência foi alta e as taxas de juros dispararam. Em setembro de 2015, a porcentagem ajustável média dos cartões (que varia de mês a mês) atingiu 414,3 por cento.
Na verdade, a pesquisa Findex revelou uma maioria de brasileiros que citou a dívida renovada (usar um empréstimo para pagar outro) como uma das principais razões pelas quais não conseguiria acessar dinheiro em caso de emergência.
Esta conjunção de falta de poupança com dívida acumulada, nos Estados Unidos e no Brasil, pode servir de alerta e exemplo, pois uma história semelhante está começando a desenrolar em Mianmar, onde mais de 150 microfinanciadoras surgiram nos últimos anos. Agricultores, trabalhadores e pequenos empresários que operam com margens muito magras estão tomando empréstimos com microfinanciadoras sem regulamentação. Muitos até outorgam a escritura da casa como garantia. Se não conseguirem pagar suas dívidas, estes indivíduos e famílias podem facilmente perder suas moradias.
Quando uma pessoa se vê presa em um ciclo de endividamento, é quase impossível poupar. E quando alguém está pagando juros astronômicos e não tem mais nenhuma linha de crédito disponível, a única opção no caso de uma emergência financeira é apelar para credores não regulamentados e às vezes até predatórios.
De acordo com Douglas Pearce, do Banco Mundial, os parceiros do UFA2020 concordaram em priorizar as contas de transações, que são contas usadas para fazer e receber pagamentos e poupar de forma segura servindo, assim, as pessoas que realmente delas precisam, além de promover a inclusão financeira. No entanto, o maior acesso a cartões de crédito e a presença de microfinanciadoras não regulamentadas e mesmo predatórias em países onde se quer trabalhar a inclusão financeira poderiam abrir a porta para problemas de dívida semelhantes aos que atormentam o Brasil. Instituições de microfinanças se juntaram ao Visa e ao MasterCard na lista de parceiros do Banco Mundial no UFA2020.
PARCEIROS DO UFA2020
Parceiros e Compromissos do Acesso Financeiro Universal 2020
Nome do Parceiro | Tipo de Parceiro | Compromisso | Presença no País |
---|---|---|---|
Bandhan | Instituição de Microcrédito | 20.000.000 contas de poupança | Índia |
10.000.000 clientes de crédito | |||
Banco Mandiri | Banco estatal | 50.000.000 clientes sem conta bancária | Indonésia |
Banco Equity | Instituição de Microcrédito | 50.000.000 clientes sem conta bancária | África |
Global Banking Alliance for Women | Aliança Financeira | 1.800.000 mulheres sem conta bancária | África |
MasterCard Corp. | Pagamento | 500.000.000 adultos financeiramente excluídos | Global |
Campanha da Cúpula do Microcrédito | Associação/Rede de Microfinanças | 53.000.000 devedores/famílias pobres | Global |
MF CEO Working Group | Associação/Rede de Microfinanças | 70.000.000 de contas novas | Global |
Ooredoo | Provedor de Rede Móvel | 17.000.000 de assinantes de serviços financeiros móveis | Argélia, Indonésia, Iraque, Kuwait, Maldivas, Mianmar, Omã e Qatar |
Pakistan Microfinance Network (PMN) | Rede de Microfinanças | 50.000.000 de contas de depósitos | Paquistão |
Banco Estatal da Índia | Banco oficial | 70.000.000 de clientes | Índia |
Telenor | Provedor de rede móvel | 110.000.000 de clientes usam seus telefones celulares para serviços financeiros | Bangladesh, Índia, Mianmar e Paquistão |
Visa | Pagamento | 500.000.000 de novas contas de pagamento eletrônico | Global |
WOCCU | Cooperativa financeira | 50.000.000 de correntistas novos (novos membros) | Global |
WSBI | Cooperativa financeira | 400.000.000 de novas contas de transação | Global |
A ECONOMIA “CINZA”
As favelas sobem e descem os morros, margeiam os rios e baías e ocupam os espaços mais marginais das grandes e pequenas cidades brasileiras. Elas são o lar de milhões de brasileiros de classe média e baixa. Mas todas as favelas têm algo importante em comum: não existem bancos tradicionais nas ruas. O mesmo pode ser dito sobre as vastas e distantes regiões rurais do Brasil, especialmente as mais pobres, no norte e nordeste.
Estas áreas são verdadeiros desertos bancários.
Mas o Brasil não está sozinho. Desertos bancários já são um fenômeno global.
É muito raro um banco abrir as portas em uma favela ou zona rural remota. Para bancos com fins lucrativos, existem uma série de boas razões. É muito caro construir e contratar pessoal para uma agência bancária ou escritório financeiro. Quando a clientela é rural e geograficamente dispersa, é preciso construir mais agências que servem menos pessoas. Particularmente nas zonas rurais, a infraestrutura deficiente de transporte significa que o acesso ao banco é trabalhoso e muitas vezes não há tecnologia adequada, o que dificulta a transferência de dinheiro. Em algumas favelas urbanas, ainda pode haver o problema adicional da segurança. Além disso, as margens de lucro para bancos em tais comunidades podem ser baixas demais para viabilizar as operações. O status econômico modesto ou marginal dos moradores torna arriscada a concessão de crédito. Ainda por cima, muitos habitantes de zonas rurais ou favelas não têm a documentação que a maioria dos bancos exige para abrir uma conta como, por exemplo, uma carteira de identidade oficial.
Muitas das pessoas que vivem nas zonas rurais ou favelas do nosso mundo trabalham na economia informal ("cinza") e a escala maciça dessas economias onde as transações são realizadas fora dos livros apresenta um enorme desafio para quem busca ampliar o acesso a serviços financeiros formais para os cidadãos "sem-banco".
No mundo inteiro, o setor informal compõe uma grande fatia da economia global. No Norte da África, 48 por cento dos postos de trabalho não agrícolas estão na economia informal. Na América Latina, esse número é 51 por cento e, na Ásia, 65 por cento. Nos países em desenvolvimento, a economia informal contribui até 40 por cento do PIB, segundo o Banco Mundial. As pessoas que fazem parte do setor informal geralmente são trabalhadores braçais, empregados domésticos, cuidadores de crianças e vendedores ambulantes. Mesmo que esta população possa economizar, ela não será capaz de abrir conta em banco sem uma alteração das normas bancárias, portanto esses trabalhadores não terão um local regulamentado e seguro para guardar seu dinheiro. As únicas maneiras de superar uma emergência financeira continuarão a ser o cofrinho caseiro ou a rota do endividamento.
OS INVISÍVEIS
REPROVADOS
ANALFABETOS FINANCEIROS
Conceitos financeiros básicos desafiam a compreensão de bilhões de adultos. Durante a pesquisa Global Findex, em 2014, a McGraw-Hill e a Gallup decidiram conduzir seu próprio estudo e criaram a Pesquisa Global de Literacia Financeira da Standard & Poor’s Ratings Services. Essa pesquisa S & P revelou que dois terços da população mundial é funcionalmente analfabeta em termos financeiros.
Os especialistas dizem que a educação financeira é um componente crítico da extensão dos benefícios da inclusão financeira ao mundo sem conta bancária. A literacia financeira básica, que é a compreensão de como funcionam as contas bancárias e taxas de juros, é fundamental para o acesso responsável ao crédito. Sem ela, o acesso ao crédito pode colocar as pessoas endividadas em vez de torná-las mais resistentes e preparadas para crises financeiras.
Parceiros financeiros com fins lucrativos tendem a enfatizar a publicidade de seus serviços e não a educação de seus clientes sobre assuntos financeiros. Nos Estados Unidos, por exemplo, as empresas de serviços financeiros gastam 25 vezes mais com o marketing de seus produtos do que em educação do cliente, de acordo com o Consumer Financial Protection Bureau, agência reguladora federal dos EUA criada na esteira da crise financeira de 2008-09.
Existe uma profunda desconexão. Se o cidadão comum não souber economizar, investir com prudência e fazer empréstimos de forma responsável, é muito pouco provável que a inclusão financeira atinja os objetivos do UFA2020. Muitos dirigentes enxergam como especialmente problemática a expansão do acesso ao crédito sem um esforço paralelo para educar os consumidores sobre os perigos da dívida.
Então, por que não existe mais ênfase e investimento em educação financeira para assegurar que este novo acesso a serviços financeiros seja um salva-vidas e não uma âncora que puxa as pessoas para baixo?
TESTE SEU CONHECIMENTO
CAPÍTULO 4
PREENCHENDO LACUNAS, SUPERANDO OBSTÁCULOS
A CONFIANÇA É A GARANTIA MAIS IMPORTANTE
Mianmar está emergindo de meio século de isolamento internacional, ditadura militar e mais de dez insurreições por conflitos étnicos. Na ausência de um sistema bancário formal, surgiu uma rede de credores informais que prosperou e, segundo estimativas, já é tão grande quanto o setor formal.
Mianmar ainda é uma sociedade muito agrária. Apenas cerca de 20 por cento da população mora em cidade grande. A população do país também tem um dos mais baixos níveis de participação no sistema financeiro formal. Então, como é que 40,6 por cento dos cidadãos de Mianmar dizem que seria totalmente possível obter fundos para cobrir uma emergência?
Mianmar oferece um estudo de caso sobre a genialidade e criatividade do ser humano ao ser forçado a criar soluções com recursos limitados. No caso de Mianmar, surgiu uma rede de credores informais e casas de penhor para suprir a falta de instituições bancárias formais. Sistemas semelhantes têm surgido em países em desenvolvimento no mundo inteiro, como Camboja e Níger.
Os agiotas oferecem a maneira mais simples de se obter fundos para enfrentar crises. Os credores são bem conhecidos em suas comunidades e conhecem bem seus clientes e as circunstâncias financeiras de cada um. Este conhecimento local demonstra ser decisivo para um sistema em que a confiança é a única garantia. O credor ético sabe se o cliente está buscando um empréstimo alto demais para sua capacidade de pagar. Como resultado, os clientes normalmente pedem somas modestas e as taxas de inadimplência estão entre as mais baixas do mundo. Mas o fato de não haver nenhuma garantia faz com que o preço do empréstimo seja robusto, normalmente em torno de 30 por cento de juros por mês.
As casas de penhores dos vilarejos são uma alternativa popular para pessoas sem conta bancária. Assim como os credores locais, esses operadores também conhecem seus clientes. A exigência de bens pessoais como garantia como, por exemplo uma moto, eletrodoméstico, jóias de ouro ou até mesmo roupa que pode ser trocada por dinheiro, as taxas de juros de uma casa de penhor são muito mais baixas, em torno de 3 por cento ao mês.
Ao trabalhar para expandir a inclusão financeira no mundo, o Banco Mundial e seus parceiros do UFA2020 poderiam analisar esses casos e se espelhar nos credores informais que trazem confiança e conhecimento pessoal para as relações com seus clientes.
OS DEVEDORES
MANTENDO A VISÃO LOCAL
MANTENDO O DINHEIRO NA REGIÃO
Para suprir a falta de acesso das famílias pobres do Nordeste brasileiro a serviços financeiros, o Banco Palmas abriu uma agência na cidade de Fortaleza em 1998. A ideia era criar um banco informal administrado pela comunidade e para a comunidade. Embora o banco não seja regulamentado e os titulares de contas não sejam considerados "financeiramente incluídos", ele foi criado exclusivamente para a comunidade, em particular para os indivíduos sem acesso a uma conta bancária formal.
Os dirigentes do Banco Palmas e líderes comunitários criaram uma “moeda social” que pode ser trocada por produtos e serviços dentro de Fortaleza. Desta forma, o dinheiro gerado dentro da comunidade permanece nela e contribui para uma acumulação gradual de riqueza local, permitindo que mais pessoas acessem crédito a preços acessíveis.
O Banco Palmas emergiu como modelo para mais de 150 bancos comunitários em todo o país. Um deles é o Banco Verde, que tem uma abordagem diferenciada. O Banco Verde troca plástico reciclável por uma moeda social que, assim como a moeda do Banco Palmas, pode ser trocada por alimentos e artigos domésticos básicos.
Os bancos comunitários não são reconhecidos como parte do sistema bancário formal, mas o Banco Central do Brasil acredita que eles estejam suprindo uma necessidade fundamental das populações que continuam desassistidas pelas instituições financeiras formais. Ao invés de legislar para removê-los, o Banco Central monitora o êxito desses bancos. Ao fornecer acesso fácil com crédito a juros baixos, os bancos comunitários oferecem aos cidadãos uma rede de segurança para enfrentar choques financeiros que não existia anteriormente.
NÃO CONSEGUE ECONOMIZAR? VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHA
VAZIO
Dizem os especialistas que ter dinheiro guardado em um lugar seguro e de fácil acesso é a melhor maneira de se preparar para um choque financeiro. No entanto, uma porcentagem gritante de 78 por cento, portanto a maioria da população mundial, não tem nenhum tipo de poupança. Embora 68 por cento dos brasileiros tenham conta bancária, apenas 12 por cento usam essas contas para economizar.
Sabemos que fazer economia não é um desafio específico de países pobres ou ricos, mas sim de qualquer país do mundo. Pescadores no Camboja, encanadores nos Estados Unidos ou caixas de banco no Brasil, todos têm o mesmo problema. Como a maioria das pessoas que trabalham no mundo, temos muito pouca renda extra para colocar na poupança no final do mês.
Os especialistas sugerem poupar 20 por cento da sua renda, se possível.
ECONOMIZANDO
NECESSIDADE DE ELEVAR A EDUCAÇÃO FINANCEIRA
COMO MUDAR O COMPORTAMENTO FINANCEIRO GLOBAL
Mais de três quartos da população mundial adulta não têm nenhum tipo de poupança, embora 62 por cento tenha contas em instituições financeiras formais. Ter conta bancária, portanto, não significa ter dinheiro economizado.
Na verdade, a maioria de nós está fazendo exatamente o oposto, isto é, usando o crédito para entrar no vermelho. Assumimos uma dívida maior do que a nossa capacidade de pagar e depois assumimos outra para poder pagar a primeira, o que nos deixa poucas opções para enfrentar crises. Sabemos que a responsabilidade financeira cabe, em última análise, ao devedor. Na prática, porém, as pessoas não estão conseguindo economizar e vivem à beira do colapso financeiro. As razões econômicas e sociais são muitas, mas a realidade é que a maioria acaba com poucas opções para enfrentar emergências.
Esta situação alarmante está levando alguns economistas a clamar por um esforço maior para incluir a educação financeira como componente crítico da campanha mundial para incluir os dois bilhões de pessoas sem conta bancária em sistemas financeiros formais. Alguns estudos sugerem, no entanto, que a educação financeira entra por um ouvido e sai pelo outro. Isso poderia ser uma das razões pelas quais a literacia financeira recebe tão pouca atenção. Um recente relatório sobre a evolução da iniciativa UFA2020 publicado pelo Centro de Inclusão Financeira conclui que essa educação está recebendo pouca atenção e deixa os clientes com pouca compreensão de como gerir as suas finanças. O Centro diz que os esforços de literacia financeira do UFA2020 devem incluir uma ênfase em conselhos práticos sobre bons comportamentos bancários.
A concessão de crédito a uma sociedade financeiramente analfabeta pode ser comparada a soltar uma raposa em um galinheiro. Economistas preocupados apontam para uma rápida expansão das lojas estrangeiras tipo “superstore” no Camboja, um país com literacia financeira de apenas 18 por cento entre os adultos. Essas lojas oferecem desde o arroz até televisores de tela plana e disponibilizam acesso fácil ao micro-crédito para itens de luxo, deixando os clientes vulneráveis a uma espiral de dívidas.
Na prática, a literacia financeira não é uma prioridade clara para os parceiros do UFA2020. A métrica do êxito do programa é convencer as pessoas a abrir contas e não educá-las sobre como usar essas contas.
Além das questões da capacidade de economizar e educação financeira, a regulamentação dos serviços financeiros, taxas de juros e proteção ao consumidor variam enormemente. Organizações como o Banco Mundial podem fazer recomendações, mas a responsabilidade final de regular os serviços financeiros formais é dos governos. Acontece que a regulamentação é uma questão delicada, especialmente quando se trata de um setor em rápida evolução e repleto de novas tecnologias que aceleram o aparecimento de novos produtos financeiros e suas formas de acesso.
Empréstimos além do limite e dívida giratória não só prejudicam a capacidade da família para superar crises financeiras, mas também ameaçam a viabilidade dos credores a longo prazo, sejam eles empresas de micro-crédito, bancos ou empresas de cartão de crédito.
O objetivo principal do Banco Mundial é aliviar a pobreza extrema por meio de auxílio para as pessoas atingirem a capacidade de se recuperar financeiramente. Para superar um choque financeiro, todo indivíduo precisa dos dois fatores: acesso a serviços financeiros e conhecimentos sobre administração de finanças individuais e consequências do acúmulo de dívida. A educação financeira deveria ser a pedra angular do esforço do Banco Mundial para desenvolver sociedades financeiramente resilientes.
SALDO ZERO
CAPÍTULO 5
SOLUÇÕES QUE DÃO CERTO
A reportagem da Orb revelou preocupações e contradições sobre implementação do projeto de inclusão financeira pela parceria do UFA2020. Os objetivos globais do Banco Mundial de erradicação da pobreza extrema e promoção de igualdade econômica são louváveis. O plano para proporcionar acesso a serviços financeiros seguros e de custo razoável parece criar um caminho para sair da pobreza e, ao mesmo tempo, incentivar a resiliência das pessoas a choques financeiros. Mas esse caminho tem seus próprios obstáculos.
A nossa pesquisa questiona a viabilidade dos objetivos definidos pelo Banco Mundial e seus parceiros. Depois de estudar os dados do Findex e examinar especificamente as melhores opções declaradas por pessoas no mundo inteiro para obter dinheiro em uma emergência financeira, percebemos que muitas daquelas que conseguem obter dinheiro residem em países com baixos níveis de inclusão financeira. Além disso, muitos desses países estão entre os mais pobres do mundo. Portanto, o fato de ser "financeiramente incluído" não garante por si só a solução para administrar um choque financeiro ou para aliviar a pobreza mundial.
O Brasil e os Estados Unidos são casos que servem de alerta. O acesso fácil ao crédito e as altas taxas de juros, especialmente no Brasil, deixam as pessoas já financeiramente incluídas ainda mais vulneráveis a choques financeiros.
Ao trazer todos os adultos do mundo para o campo da inclusão financeira na tentativa de aliviar a pobreza, o Banco Mundial e seus parceiros poderiam enfatizar melhor a educação financeira e a proteção do cliente. Seria recomendável para os parceiros do UFA2020, assim como para seus clientes, reconhecer e implementar os múltiplos aspectos de uma saúde financeira vibrante. Esses aspectos incluiriam: acesso a maneiras seguras e confiáveis de fazer economia e conduzir transações financeiras: educação financeira sobre gestão de contas e endividamento, proteção do consumidor e regulamentação cuidadosa dos credores e dos juros que eles cobram. Por último, e igualmente importante, deveriam encontrar maneiras de reproduzir o toque pessoal e o conhecimento local que os credores informais trazem para o seu negócio como uma maneira de verificar se os devedores estão ultrapassando seus limites.
Somente a aplicação deste conjunto completo de táticas poderá trazer êxito ao trabalho do Banco Mundial e seus parceiros do UFA2020 em prol do alívio da maior de todas as emergências financeiras: a pobreza extrema.